São Paulo é obrigado a indenizar garoto da base após dispensa

Atualmente está no Internacional
    O atacante Clairton Netto jogou no São Paulo dos 9 aos 18 anos. Conquistou títulos importantes, como o Brasileiro Sub-20, mas teve duas lesões que exigiram cirurgias no joelho. Em 2016, foi dispensado. Sua família, pais e três irmãs, sairam de Ituiutaba (MG) para morar com ele em São Paulo. Todos dependiam da bolsa de R$ 6 mil por mês. Com o rompimento, o atleta ficou perdido. De acordo com a Lei Pelé, os clubes de futebol não precisam pagar nenhuma indenização em caso de dispensa dos atletas da base. Ele demorou seis meses para encontrar outro time e decidiu procurar a Justiça.
Na semana passada, em decisão inédita, a 40.ª Vara do Trabalho de São Paulo condenou o clube ao pagamento de indenização de R$ 33 mil por danos materiais. A decisão, assinada pela juíza do Trabalho Eumara Nogueira Borges Lyra Pimenta, é de primeira instância. O São Paulo vai recorrer. “Pela lei esportiva, os contratos de formação podem ser rompidos unilateralmente, sem a necessidade de pagamento de qualquer indenização”, sustenta Leonardo Serafim, diretor jurídico do São Paulo.
A Lei Pelé prevê o pagamento de multa para o clube caso o garoto queira se desligar. Por outro lado, como aconteceu no caso de Clairton, os clubes não têm obrigação de indenização. “Assim como existe uma multa indenizatória nos contratos na CLT, os clubes deveriam pagar uma multa no caso da lei desportiva”, defende o advogado Aldo Giovani Kurle, autor do processo contra o São Paulo. “A minha percepção é que esse caso vire um precedente para sensibilizar as autoridades para a inclusão de uma cláusula indenizatória em favor dos jovens atletas na Lei Pelé”, afirma.
A decisão abre uma discussão mais ampla, afinal, jogadores das categorias de base não têm direitos trabalhistas. “Os direitos trabalhistas só são assegurados quando os atletas são contratados na modalidade profissional”, informa o Ministério do Trabalho em nota ao Estado.
Cristiane Sbalqueiro, procuradora do Ministério Público do Trabalho, tem um entendimento diferente. Ela acredita que há relação de trabalho entre jovens e clubes de futebol, o que exigiria maior proteção da legislação trabalhista a eles. “A relação jurídica entre clubes e atletas em formação constitui uma relação de trabalho. É uma relação de trabalho especial, porque seu regime jurídico está definido na Lei Pelé, e não na CLT”, explica a procuradora. “A Lei Pelé afastou a incidência da CLT nessa modalidade de relação de trabalho sob justificativa de que suas suas características são peculiares. O MPT entende que essa conformação contraria princípios constitucionais”, afirma.
Guilherme Martorelli, advogado do Sindicato de Atletas de São Paulo, afirma que a decisão de profissionalizar um atleta a partir dos 16 anos, o que garantiria os direitos trabalhistas, é dos clubes. “Os clubes podem decidir profissionalizar o atleta ou não a partir dos 16. A Lei Pelé não define obrigatoriedade. Em alguns casos, eles só profissionalizam o atleta com maior potencial técnico, pensando em mantê-lo no clube”, completa o advogado.
Existe, no mínimo, uma contradição entre a Lei Pelé e a CLT. A Lei Pelé define que o “atleta não profissional e em formação, maior de 14 e menor de 20 anos, poderá receber auxílio financeiro sob a forma de bolsa de aprendizagem sem que seja gerado vínculo empregatício entre as partes”. Ocorre que a Constituição crava em 16 anos a idade mínima para o trabalho, “salvo na condição de aprendiz”, a partir dos 14. A CLT diz o mesmo. Isso significa que a bolsa aprendizagem pode, mas um contrato de aprendizagem não pode. “É discriminatória a não-proteção previdenciária do atleta em formação. Por que todos os aprendizes a partir dos 14 anos têm direito a cobertura previdenciária e os atletas mirins não?”, questiona a procuradora do trabalho.
Um saída possível seria uma revisão da Lei Pelé. “O caminho seria uma legislação, ainda que não trabalhista, que normatize mais detalhadamente a atividade desses jovens”, opina o advogado e especialista em direito desportivo Domingos Zainaghi. “Precisaríamos fazer regras de proteção trabalhista especiais para os jovens”, afirma Sbalqueiro.
Clairton está no Internacional. Afirma estar em grande momento, diz não guardar mágoa do São Paulo, mas conta que ficou feliz com a decisão da juíza.
Mercado europeu
O cenário jurídico das categorias de base na Europa é semelhante ao brasileiro: os direitos trabalhistas só são adquiridos a partir da assinatura do contrato profissional, que acontece a partir dos 16 anos. Por outro lado, existem diferenças importantes em relação aos benefícios, à valorização da educação e à exigência de instalações adequadas.
Em Portugal, o jogador pode assinar o primeiro contrato profissional apenas a partir dos 16 anos. A partir dos 14 anos, ele pode firmar um acordo de formação que, além da exigência de instalações que respeitem normas de higiene e segurança, também garante o direito a férias, descansos semanais regulares e nos feriados do ano.
Na Inglaterra, os critérios são mais rigorosos. O país valoriza a educação antes da profissionalização precoce. Lá, o garoto pode assinar o primeiro contrato profissional apenas a partir dos 17 anos de idade. A partir dos 14, ele assina um documento denominado “scholarship”, semelhante ao contrato de formação existente no Brasil e Portugal.
O acordo também não gera vínculo empregatício. Por outro lado, se o atleta precisar estudar em período integral, somente pode assinar contrato profissional a partir dos 18 anos. Antes desta idade, o vínculo não se reveste de natureza empregatícia, mas sobretudo de natureza amadora e educacional.
Eduardo Carlezzo, advogado especialista em direito desportivo internacional, diz que a falta de vínculo não impede que eventuais danos causados pelo clube ao atleta sejam indenizados nas esfera cível e criminal. “Nesse aspecto, a legislação brasileira pode ser considerada avançada, uma vez que a Lei Pelé exige seguro de vida inclusive em contratos de formação desportiva.”

 

 

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